O vento gelado chicoteava meu rosto enquanto eu dirigia para o trabalho, causando-me imenso desconforto. “Fácil resolver isso: basta desistir e fechar as janelas”, disse o diabinho, com tanta ênfase que eu quase podia vê-lo sentado no meu ombro esquerdo. “Você impôs a si mesmo esta dificuldade porque quer ver crescer sua força de vontade e vai desistir logo na primeira tentativa?”, espicaçou-me o anjinho, certamente aboletado no meu ombro direito, revelando uma esperteza diabólica ao usar uma das armas preferidas do seu inimigo: meu orgulho. E foi assim que meu angelical amigo venceu minha batalha interior. Mesmo com a cara meio azulada, à la Smurf Ranzinza, mantive as porc... digo, os benditos vidros abertos.
“Por que alguém causa voluntariamente a si mesmo tamanho sofrimento? ”, você pode estar se perguntando. E não sem certa dose de razão. Parece mesmo esquisito, mas tal atitude tem uma explicação. Ajo assim justamente porque concordo com o anjo (sem querer - e já sendo - seu puxa-saco): a satisfação de realizar tarefas difíceis e simples (como dirigir de vidro aberto num frio de menos 10°, ou abdicar da delícia de um banho em modo frango cozido) é uma ponte para vitórias em atividades moralmente mais exigentes, como ser honesto, justo e agradável com a mulher, filhos, parentes, amigos, colegas de trabalho etc.
Não tenho mais força nem idade para ser como David Goggins 1, mas admiro demais sua filosofia de vida: fugir do desconforto é fugir da vida, porque a vida é desconfortável na imensa maioria do tempo. É óbvio que não se deve transformar tal filosofia em niilismo, mas é fácil constatar que a verdadeira felicidade e o esforço andam mais juntos que Jennifer e Jonathan Heart (se você pescou a referência, tenho más notícias...).
Aliás, a união do metafórico Casal 20 já era apontada como indissolúvel desde os tempos de Sócrates. Sêneca era outro filósofo a recomendar enfaticamente que um indivíduo pusesse voluntariamente sua força à prova:
“Acaso há dúvida de que a força mais confiável é a que é invencível e não a que não sofre ataque, já que é duvidosa a robustez não colocada à prova, porém, é tida merecidamente como a mais confiável a firmeza que repele todos os ataques?”
A necessidade de se buscar a força - e não a segurança - era constantemente reforçada pelo eterno Professor Olavo de Carvalho, que adicionava à mistura altas doses de observação atenta e apaixonada da realidade, compondo um verdadeiro “trisal” filosófico; opinião, aliás, compartilhada por ninguém menos do que Jordan Peterson. Se a maior parte dessas afirmações passaram pelo crivo dos séculos e permanecem até hoje é porque muito provavelmente são verdadeiras, concorda?
Saindo da Filosofia e descendo novamente para o terra-a-terra da vida terrena, o que é mais gostoso do que chegar a um lugar acolhedor, depois de dirigir no frio? O que é mais prazeroso do que vestir uma roupa quentinha e sentir-se pronto para matar o leão do dia, depois de tomar banho num chuveiro ligado no modo Elsa, jorrando gelo em vez de água?
Quem me acompanha por aqui já sabe que eu gosto de correr. Se tem uma coisa que aprendi nos 12 + 1 anos praticando a sagrada arte de moer as canelas foi esta: se seu objetivo é “apenas” manter a saúde (e não há nada de errado nisso, pelo contrário!), correr 10 km em uma hora durante 5 anos certamente irá ajudá-lo a atingir esta meta.
Entretanto, se você quer melhorar como corredor - e 99,875% dos corredores querem -, o que você tem que fazer são treinos de tiro. Sim, aqueles treinos que fazem um sujeito pedir aos prantos o colo da mamãe; treinos que terminam fazendo os cambitos do corredor tremerem mais que gelatina, como este que eu relatei aqui 2 . E como diria Seu Creysson: “E não é só Wilson”: há também os intermináveis longões, onde você vai num ritmo mais lento, mas passa (muito) mais tempo correndo, como esse que fiz em Fortaleza 3 .
Claro que a necessidade de esforço não se aplica apenas a quem quer correr. Usei a corrida aqui porque considero-a uma metáfora perfeita da vida; o “no pain, no gain” da famosa marca de tênis virou sinônimo de premiação do esforço precisamente por abarcar todos os aspectos da nossa existência.
Resumindo (e finalizando): O conjunto dessas pequenas vitórias sobre si mesmo – as mais difíceis e, por isso mesmo, as mais significativas - é a verdadeira morada da felicidade.
Está pronto para ter um ar condicionado em casa, parabéns!🤪❤️