O astro-rei já estendia copiosamente seus raios por todo o quarto, prenúncio de que seria mais um dia quente em Fortaleza.
Ainda desacostumado ao nascer do Sol mais cedo no litoral, achei que já era tarde para sair para correr, o que secretamente alegrava minha alma procrastinadora, embora eu externasse um “Puta que o pariu, perdi a hora de ir correr!” com a mesma convicção de uma criança de seis anos pega na mentira.
Porém, uma olhada rápida no relógio desfez minhas ilusões: ainda eram 6:15 da manhã. Tive a clara sensação de ouvir meu anjo rir com angelical deboche para meu diabo; vesti-me, ainda praguejando, engoli o café forte, quente e amargo, tentando consolar-me com a ideia de que seria melhor fazer os 14 quilômetros de má vontade do que de ressaca. Afinal de contas, haveria festa junina à noite no condomínio e eu sabia que a cerveja e as comidas típicas seriam um convite tentador demais.
Cheguei ao local do treino, liguei o relógio e os primeiros 15 minutos foram exatamente iguais aos primeiros 15 minutos dos últimos 12 anos de corrida: as pernas pesadas como chumbo, a cabeça explodindo em uma saraivada de xingamentos e aquela tão familiar sensação de “Meu Deus, o que eu estou fazendo aqui?”
E eis que com mais ou menos 15 minutos de treino aconteceu magicamente aquilo que acontecia sempre nos últimos 12 anos de treinos longos e sem compromisso com ritmo ou velocidade: minha consciência entrou no modo “piloto automático”; os únicos sons que eu percebia eram os das batidas dos pés no chão, além de gorjeios de aves, de algumas cigarras cantando e um distante ruído de homens que provavelmente aproveitavam o campus praticamente deserto para trabalhar nas necessárias obras na universidade, usando máquinas que eu não distinguia quais eram.
Mergulhada nesse cenário de quietude exterior, minha mente pôde se entregar completamente aos pensamentos, mundo de onde eu só retornava de vez em quando, ao me deparar com solícitos e sorridentes funcionários da manutenção que cruzavam vez por outra meu caminho, desejando-me revigorantes “Bom dia!”
A essa altura do treino, o rio de ideias era tão caudaloso que lamentei - pela milionésima vez - não ter trazido um bloquinho e um toco de lápis. Trabalho, estudos, relacionamentos e até vida espiritual… os assuntos formavam um redemoinho que eu não tinha a menor intenção de tentar controlar…
Além dos cumprimentos dos funcionários, a única coisa que me trazia de regresso do mundo das ideias era o relógio, que, ao fim de cada quilômetro vencido, vibrava no meu pulso e sussurrava-me com gentileza: “Falta menos um. Você está indo bem. Continue firme.”
O sol causticante já me provocava um rio de suor, que nascia na testa e descia pela roupa, em tão grande volume que eu parecia ter pulado vestido no lago que margeava a pista por onde eu corria.
E eis que de repente o relógio vibrou, avisando-me que eu completara o último quilômetro. Nesse momento, tive a nítida sensação de que o aparelho me parabenizava: “Acabamos. Missão cumprida – e comprida! Viu como foi bom ter resistido à vontade de não vir?”
O treino pareceu-me tão satisfatório - física e mentalmente - que as pernas e a cabeça entraram em desacordo: as primeiras dizendo que 1h30 para elas já era tempo suficiente; a segunda respondendo que a higiene mental fora tão profunda que poderia perfeitamente ter durado mais 1h30.
Contudo, as pernas venceram o debate e comecei a volta pra casa, com o céu azul, luminoso e limpo a me abençoar o esforço e a sugerir: “Essa sensação é boa demais pra não ser registrada, né? Então, que tal agora chegar em casa e aproveitar pra unir duas de suas paixões, a corrida e a caneta?”
Que bela descrição! Todo corredor diria: exatamente!!! ...do começo ao fim!
Só quem corre e escreve sabe o quanto seu texto é real! Correr e escrever são iguais a bacon: V I D A!